30 de ago. de 2007

Capitulo 3

Manoel Alberôncio Leomar Miranda Clementino Albuquerque Furtado da Silva Pereira, o vulgo Zé Doca, é um ariano de vinte e quatro anos. Seu extenso nome foi dado por seu Pai em homenagem a alguns de seus irmãos - evidentemente a homenagem só foi prestada aos irmãos que ele mais tinha apreço, já que ao todo eram trinta e dois. Sabe como é né? Não tinha televisão... Nada pra fazer...
Zé Doca é filho de um casal de lavradores naturais da cidade de Logo em Seguida, que fica quilômetros depois de Aqui – Perto, bem próxima do município de Daqui Não Passa. Alguns cientistas e especialistas em Anatomia, depois de longos anos de pesquisa, concluíram em unanimidade que Daqui Não Passa é realmente o c... do mundo.
No final da década de cinqüenta o ainda casal de enamorados Jucélio Amaral da Silva e Filopência Pereira atraídos pela proposta de terras distribuídas gratuitamente pelos Bavarianos, migraram para Aqui – Perto.
Jucélio e Filopência casaram-se logo ao chegar na cidade. Na época ele tinha vinte e seis anos, e ela treze. Pouco tempo depois, com a ajuda de amigos, construíram uma casa e, logo em seguida a mãe de Jucélio veio morar com o casal. Dois anos depois Zé Doca nasceu.
Quando Zé Doca nasceu ninguém o esperava. Na verdade ninguém sabia que Filopência estava grávida. Nem ela mesma sabia. Um fato curioso é que durante toda a gestação a sua barriga não aumentou um centímetro sequer. E foi num domingo pela manhã, quando Filopência voltava do rio para sua casa com uma lata d’água na cabeça que Zé Doca nasceu.Não houve parto. Zé Doca simplesmente “saiu” do corpo de Filopência e rolou pelo chão. A principio ela não percebeu nada. Quando foi se dá conta já tinha arrastado o menino por pelo menos dez metros. Filopência olhou para o chão e viu aquela coisa esquizofrênica; levou um susto, não se deu conta que era uma criança. Foi então que ela viu o cordão umbilical que os ligava e foi tomada por uma súbita emoção. Rapidamente jogou a lata d’água no chão, pegou o menino e correu para avisar ao marido. Jucélio ficou muito intrigado com o fato, e mais ainda com aquela criatura. O menino era muito franzino. A cabeça era desproporcional ao corpo, as orelhas eram mínimas, o nariz mais parecia o focinho de um rato, e os olhos eram tão pequenos que pareciam estarem fechados. Um médico foi chamado, tirou suas medidas. Depois o médico deu-lhe umas palmadas leve na bunda a fim de fazê-lo chorar, mas não foi ouvido nada. Repetiu as palmadas e nada. Então virou o menino e olhou fixamente o seu rosto. A expressão facial da criança era a mesma de qualquer pessoa que estivesse chorando, mas não era possível ouvir um ruído que confirmasse o fato. O doutor encostou levemente sua orelha á boca do menino e percebeu alguns sons desconsertados. Ufa! Que alivio! O menino não era mudo, apenas não tinha força suficiente para chorar em bom tom.
Jucélio e Filopência agora tinham um filho. No começo Jucélio não ficou muito feliz com isso. “É mais uma boca pra sustentar!” dizia ele, mas com o tempo passou a gostar do garoto. Como seus pais trabalhavam o dia inteiro na roça, Dona Rita, avó do garoto, eram quem cuidava dele. Nunca foi amamentado, vivia a base de mingau de farinha. Dona Rita achava muito complicado o nome do garoto, toda hora lhe arranjava um diferente. Ela então resolveu dar-lhe um nome mais simples, mais fácil de falar. Escolheu o nome Zé Doca ao folhear algumas páginas do livro 100 Lugares que você NÃO deve visitar quando estiver no Maranhão.
Aos sete anos, o menino deu seus primeiros passos. A maior dificuldade era conseguir se equilibrar naquelas pernas finas que pareciam dois alfinetes. De repente, o menino tranqüilo e sereno transformou-se numa criatura impulsiva. Andava pela casa derrubando tudo que encontrava. A velha coitada; passava o dia tentando arrumar a bagunça do menino, em vão é claro. Um ano depois o menino pronunciou suas primeiras palavras. Foi um dia muito emocionante para toda a família. Era uma noite de domingo...
- Vamos filho, repita comigo: Papai! - disse Jucélio sentado na sala.
O menino nem abria a boca.
- Papai, diga: Pa- pa – i! - insistiu Jucélio.
O menino continuava sem dizer nada.
- É fácil vamos, é só dizer Papai ó: Pa – pa – i. – falou Jucélio já perdendo a paciência.
O menino não dizia nada. Nem parecia estar ali.
Jucélio então suspendeu o menino á altura dos seus olhos e proclamou:
- Vamos menino burro, diga Papai!
O menino então encarou-o por um instante e depois soletrou bem alto:
- Me sol-ta ba-i-to-la!
No mesmo ano que aprendeu a falar, Zé Doca foi matriculado numa escolinha do município. O menino era um peste. Estava sempre metido em confusões. Quase que diariamente seus pais recebiam uma reclamação formal da diretora intimando-os a comparecer na escola. A maioria das confusões nas quais Zé Doca se metia diziam respeito a algum apelido que lhe era dado por seus colegas de classe. O que mais o irritava, e o mais frequentemente utilizado pelos seus amigos, era “cabeça de melancia”.Apesar de tudo Zé Doca adorava a escola. Adorava ler, escrever, brincar com os amigos. Era muito feliz ali. E sentiu muito quando foi forçado a largar os estudos ainda na segunda série para trabalhar. Isso devido a morte de seus pais. Jucélio e Filopência foram cruelmente assassinados numa plantação de cana na qual trabalhavam. O crime permanece um mistério. Zé Doca ficou abalado. Dona Rita mais ainda. O rapaz teve então que se virar para sustentar-se e cuidar de Dona Rita. Zé Doca era um rapaz muito astucioso, sempre encontrava uma maneira de garantir o pão de cada dia. Á noite, quando não estava trabalhando,gostava de freqüentar a praça da cidade onde costumava cogitar sobre a vida, o universo e tudo mais . Foi nessa época que o rapaz teve seu primeiro relacionamento amoroso. Relacionamento este que durou exatamente duas horas. Foi esse o tempo necessário para ele descobrir que a moça trabalhava no cabaré da cidade – evidentemente essa descoberta só deu-se depois que a moça começou a cobrá-lo pelos beijos que tinham trocado. O rapaz ficou muito abalado. Tentou suicidar-se por duas vezes, mas devido aos meios utilizados não obteve êxito. Na primeira tentou enforcar-se amarrando um pedaço de corda podre numa arvore. A corda partiu-se. O galho da arvore também. Na segunda vez tentou afogar-se no rio. Quando estava perdendo o fôlego quase que completamente, de repente, a pouca água que restava no rio, como num passe de mágica, evaporou-se completamente. Mas isso tem uma explicação: era mês de agosto. Aqui – perto é uma cidade de clima bem saudável comparando-se as outras regiões do Piauí. Porém há um mês no ano que a temperatura sobe imensuravelmente. Este mês é tão quente que faz o deserto do Saara em pleno meio dia, parecer com a Rússia. È o mês de agosto. Nesta época do ano é comum vê os cidadãos fritarem ovos na beira da estrada para economizarem a lenha do fogaréu. Zé Doca passou muito tempo, muito tempo mesmo sem relacionar-se com outra mulher. Para ser mais exato, passaram-se três anos até aparecer uma outra mulher na vida do jovem que lhe fizera esquecer a traumatizante experiência antecedente. O nome dela era Izaura. Dona Izaura era uma viúva de cinqüenta e quatro anos e feições nada agradáveis. O namoro gerou muita polêmica na cidade. Diziam as más línguas que Dona Izaura utilizou-se de alguma espécie de macumba para fisgar o coração do jovem, então com dezesseis anos de idade. O namoro já contava seis meses e os dois pareciam estar muito felizes, até que de repente Dona Izaura sumiu da cidade sem deixar nenhum vestígio. Zé Doca traumatizou-se novamente e decidiu não se envolver mais com nenhuma mulher. Chegou a tentar a sorte com algumas cabritinhas que encontrava na beira da estrada, mas se irritava profundamente com os berros que elas davam. O tempo foi passando. O garotinho feio e raquítico havia se tornado um homem forte, bem definido, de feições adequadas. As coisas pareciam estar na mais perfeita ordem na vida de Zé Doca. Não tinha muito dinheiro, mas tinha o suficiente para comer. Porém, há exatamente um mês atrás, Dona Rita foi pega de surpresa por uma doença muito grave. O médico constatou que ela deveria ir à capital para fazer uma cirurgia. Zé Doca ficou desesperado. Não sabia o que fazer. Não tinha dinheiro para bancar as despesas. Recorreu a todos os nobres de Aqui – Perto, mas todos lhe negaram apoio. A essa altura ele já sabia que a única pessoa que podia ajudá-lo era o Sr. Antunes. Após uma luta árdua contra os seus princípios - ele não gostava dos Bavarianos - , Zé Doca procurou Seu Antunes que sem nenhuma burocracia fez-lhe o empréstimo.
E assim seguiu a vida do jovem Zé Doca. Uma pessoa simples, comum, dono de uma história pífia e medíocre. A historia de um personagem sem expressão; insignificante. Uma historia que jamais daria um livro...

24 de ago. de 2007

Capitulo 2

Os dois capangas que - sempre armados é claro - acompanham-o, são seus homens de confiança. Sempre que o velho vai resolver alguma coisa eles estão presentes. São leais ao Sr. Antunes há quase vinte anos. A confiança é tanta que frequentemente ele manda-os à capital com uma quantia impronunciável de dinheiro para depositar em uma de suas contas – é importante grifar aqui que ele não confia seu dinheiro nem mesmo a sua própria mãe que ele tanto estima.
Sentado ao lado direito do Sr. Antunes encontra-se Petrônio, ao seu lado esquerdo, Potrinio.
Petrônio e Potrinio são irmãos. Dizem serem gêmeos mas a verdade é que não se parecem nem um pouco. Petrônio é um pouco mais alto mais forte e mais bronzeado que seu irmão e afirma veemente ser mais bonito também. Possui uma cicatriz que vai das costas até a altura do pescoço que ganhou ainda criança ao cair de um tamarindeiro, arvore muito comum em Aqui - perto. Uma característica bastante peculiar do Petrônio é o fato de ele está sempre piscando o olho esquerdo como uma espécie de tic nervoso. O mais curioso é que tudo é perfeitamente sincronizado como os passos de um tango. O seu olho esquerdo costuma piscar numa razão de quatro para um em relação ao seu olho direito.
Potrinio por sua vez, um pouco mais baixo e franzino que Petrônio, não possui nenhuma cicatriz no corpo e nem o tic nervoso do irmão. Seu único defeito – além é claro do seu ridículo bigode de Charles Chaplin - é ser gago.A gagueira de Potrinio não é daquelas comuns quase imperceptíveis, é daquelas brabas mesmo que chega a irritar profundamente quem conversa com ele. Quando ele está muito ansioso para dizer algo de muito importante ao Sr. Antunes, de tanto esforço que ele faz pra falar, geralmente quase sempre, ele borra as calças, o que obrigou o velho a tomar medidas drásticas: comprou fraldas para ele usar.
Potrinio não nasceu gago, ficou gago. Isso aos vinte anos de idade numa noite de quarta – feira na fazenda dos Bavarianos quando ele se preparava para tomar seu banho semanal. O banheiro estava muito escuro. Potrinio então acendeu uma vela e a colocou vagarosamente no canto esquerdo da porta. Despiu-se e levantou o pé em direção à banheira e foi ai que de repente, num movimento brusco, uma rã inexplicavelmente emerge da água e num ataque impiedoso agarra-se ao pinto de Potrinio. Nenhum médico até hoje conseguiu explicar como esse fato resultou na gagueira de Potrinio. Desde esta data ele não pode sequer ver uma rã, um sapo, um girino ou qualquer coisa do tipo que entra em pânico.
Petrônio e Potrinio são definitivamente diferentes. A única coisa que os fazem parecidos é o fato de se vestirem impecavelmente iguais. A mesma camisa, a mesma calça. A mesma cor de camisa, a mesma cor de calça. Os mesmos sapatos e meias, os mesmos chapeis e tudo o mais. Essa isonomia de vestimentas já proporcionou algumas situações bem cômicas como, por exemplo, o dia em que Potrinio levou uma surra de cabo de vassoura da namorada de seu irmão que o confundiu com seu amado. Por conta disso ele passou dois meses internado num hospital da capital.
Os irmãos Petrônio e Potrinio chegaram ainda muito jovens em Aqui – Perto. Vieram carregados por seu pai. A mãe deles acabara de falecer e de tanta dor que seu pai sentia abandonou a cidade e tudo que tinha. Chegaram a mendigar nas ruas de Aqui – Perto até que certo dia o Sr. Antunes os tirou das ruas e abrigou-lhes na sua fazenda. Claudiomar, o pai dos meninos, trabalhou como caseiro na fazenda do Sr. Antunes por dez anos antes de falecer. O médico da fazenda disse ter sido vitima de ataque cardíaco.
Com a morte do velho, o Sr. Antunes se aproximou ainda mais dos meninos e desde então tem-lhes como seus homens de confiança.
Petrônio e Potrinio estimam muito o velho Antunes. Gostam de fazer trabalhos para ele, assim se sentem muito úteis. E naquele momento, sentado no banco da charrete ao lado do Sr. Antunes é esta a sensação que lhes dominam: a sensação de ser útil, de ser importante ao velho.
Dois quarteirões depois da praça Petrônio faz um sinal com a mão para o charreteiro que entende perfeitamente e faz o cavalo virar a direita. A charrete percorre agora uma rua estreita, cheia de casas antigas e muitas poças d’água no chão asqueroso. Algumas esquinas depois, Petrônio faz outro sinal e a charrete para. Petrônio e Potrinio descem e logo em seguida o Sr. Antunes.
- É aqui mesmo ? – Resmunga Seu Antunes em um tom grosseiro, mas muito feliz por dentro.
- S- Si- Sim Se- Senhor! – Responde Potrinio com muito esforço.
Seu Antunes analisa a casa minuciosamente. É uma casa muito humilde. As paredes todas feitas de barro e o telhado de palha. O simples miado de um gato pode pôr-lhe abaixo a qualquer momento. Mas, para a sorte daquela pobre casa e das almas miseraveis que a habitam, não havia gatos por aquelas bandas. O velho ergue a mão e bate duas vezes na porta. Ninguém abre. Bate novamente. Novamente ninguém abre. Petrônio posiciona-se para derrubar a porta – acredite, ele não precisaria de muito esforço para isso – mas então ouviu-se um estalo, e a porta se abriu. Por trás da porta surgiu vagarosamente o rosto de um rapaz que parecia está dormindo. Seus cabelos estavam arrepiados, os olhos cheios de remelas, a camisa desabotoada e as calças meio tortas. Ergueu a cabeça e tomou um susto que arrepiou mais ainda os seus cabelos.
- Se- Seu Antunes? – Gaguejou ele, apesar de não ser gago.
- Vim receber o meu dinheiro, como combinamos. – Disse Seu Antunes com convicção.
- Seu di-dinheiro? - indagou o rapaz, com a mão direita entre os cabelos, bagunçando-os ainda mais.
- Ora Zé Doca! – brandiu Seu Antunes com um ar meio feroz – Não se faça de desentendido.
- Ah! Sim. O dinheiro... – falou vagarosamente o rapaz.
- Isso mesmo! Deixe de prosa e me entregue logo o dinheiro, não tenho tempo a perder com você. – disse Seu Antunes com um ar mais feroz ainda.
- Sabe o que é... - titubeou Zé Doca.
Seu Antunes fixou os olhos em Zé doca e mexeu levemente na gola da camisa. Seus capangas fizeram o mesmo.
- È que... – falou Zé Doca dando um pequeno passo para fora e abrindo um sorriso tímido.
- É que... É que aconteceu um imprevisto sabe? – disse ele pondo a mão cautelosamente sobre o ombro de Seu Antunes.
- Imprevisto? – indagou o velho com um ar terrivelmente zangado, reitirando a mão de Zé Doca que estava sobre seu ombro. – Ora, rapaz! Do que você está falando?
- Sabe o que é Seu Antunes? - disse o rapaz, vagarosamente, como se estivesse procurando as palavras.
Diga logo rapaz, sem rodeios- É que... – disse Zé Doca caminhando cabisbaixo ao redor do velho.
Seu Antunes deixou escapar um grunhido demonstrando que não estava nem um pouco feliz com aquilo.
- É que eu tava com o dinheiro aqui certinho pra pagar vossa pessoa, sabe? – disse Zé Doca – Mas, ai aconteceu uma coisa terrível Seu Antunes, o senhor não vai nem acreditar.
O velho deixou escapar outro grunhido, desta vez mais estridente.
- Ontem eu fui ao banco tirar o dinheiro pra pagar o senhor, mas ai, quando eu estava voltando pra casa, - falou Zé Doca, com a mão esquerda tirando o suor da testa – apareceram dois assaltantes terrivelmente armados e levaram meu dinheiro. Eu não pude fazer nada Seu Antunes. Eles levaram tudo, até minha roupa. – continuou quase chorando.
Seu Antunes então se virou e encarou Zé Doca que neste momento se encontrava atrás dele. Os capangas também se viraram e fizeram a mesma cara de furioso do seu chefe.
- Oxênti! E desde quando tu tem conta em banco cabra?
- Eu fiz uma semana passada. Pra me prevenir sabe?
- Mas oxênti! Assaltantes por essas bandas?
- Pois é! Eu também num acreditei não. Só depois que eles me mostraram as armas carregadas. – Disse Zé Doca, caminhando novamente ao redor de Seu Antunes.
- E como era o rosto deles?
- O pior que nem deu pra ver, já era muito tarde, estava muito escuro.
- Oxênti cabra, mas o banco num abre a noite não. Tu ta querendo me enrolar? – pergunto Seu Antunes terrivelmente nervoso, pois ele não acreditava que alguém poderia ter coragem de tentar trapaceá-lo.
- Não Seu Antunes. Mas que pensamento o seu...
- Pois tu vai morrer é agora pra servir de lição cabra safado! – interrompeu Seu Antunes.
- Pelo amor de Deus Seu Antunes. Juro que é verdade.
Os capangas seguraram Zé Doca, um em cada braço, e o fizeram ajoelhar de frente ao velho. Seu Antunes então puxou um revolver que tinha escondido na cintura, certificou-se que tinha munição dentro e a apontou para Zé Doca.
- Já sei Seu Antunes, o senhor pode ficar com a casa. - disse com a voz trêmula.
- E um barraco desses lá vale nada.
- Tenha piedade de mim Seu Antunes. Não posso morrer. Minha vovozinha precisa de mim. – disse Zé Doca desesperado.
- Ninguém enrola um Bavariano. Vai pagar com a vida pela graça que fez cabra safado.
Seu Antunes posicionou o dedo sobre o gatilho e fechou o olho esquerdo. Zé Doca baixou a cabeça e começou a rezar sutilmente . Petrônio e Potrinio, ainda imobilizando Zé Doca, fecharam os olhos.
Fez-se um silêncio. Zé Doca tornou a rezar. De repente, ouviu-se um barulho forte. De repente ouviu-se outro barulho forte, e mais outro e mais outro.
Meu Deus? Será que Zé Doca foi mesmo morto? Seria esse o fim deste pobre infeliz?
Não! Zé Doca não podia morrer. Não por ele ser o protagonista desta história. Não, esse não é o motivo.O único motivo que o impedia de morrer era o fato de ele não ter onde cair morto.
Os barulhos? Ah sim! Foram causados pelos passos de um cavalo que aproximava-se a toda velocidade da casa de Zé Doca. O animal parou bruscamente em frente a casa e um homem saltou das suas costas. Seu Antunes levou um susto. Petrônio e Potrinio também. Zé doca, que ainda estava rezando, tomou um susto maior ainda ao perceber que ainda estava vivo.
Era mais um dos capangas de Seu Antunes. Estava ofegante. Parecia muito cansado como se ao invés do cavalo ter-lhe levado até ali,ele tivesse levado o cavalo.
O homem respirou um pouco, olhou para o velho, tirou o chapéu e fez uma reverência.
- Perdoe-me interromper Senhor Antunes – disse
O velho encarou o homem, ainda com a arma apontada para Zé Doca.
- Ora essa! Que diachos você quer por aqui rapaz? Num te disse pra não sair da fazenda ein? – disse irritado.
- Perdoe-me mais uma vez chefe, mas é que aconteceu uma coisa que o senhor precisa saber.
- Pois diga logo que ainda tenho que matar este cabra aqui hoje – disse apontando com rosto para Zé Doca.
- É que... Sua Filha acabou de chegar de viagem e...
- Minha filha? – interrompeu Seu Antunes - Mas como assim? Sem Avisar? Meu Deus...
Seu Antunes neste momento estava tão preocupado com a noticia da chegada de sua filha que nem lembrava que queria matar Zé Doca.
A filha de Seu Antunes é uma jovem moça de vinte e um anos que mora na capital do Estado. Ela costuma passar férias em Aqui - Perto na fazenda da família, pois ela, assim como o pai, é muito apegada à natureza.
- Meu Deus! Ordene imediatamente aos criados que reparem a pista de hipismo para que amanhã o Fagundes já possa dar aulas.Diga a eles também que cuidem dos cavalos dela. Eles estão muito maltratados e ela com certeza vai querer vê-los logo. – falou Seu Antunes em tom imperativo.
- Pois é Seu Antunes, mas ai que ta outro problema... – disse o capanga.
- Outro Problema? Qual?
- É que o Seu Fagundes morreu. Foi agora a pouco.
- Meu Deus! Esse velho até pra morrer escolheu o dia errado. Só pode ser maldição da égua preta.
A égua preta era um animal da fazenda de Seu Antunes no qual ele acreditava ser uma reencarnação do capeta, pois sempre que ele a via tinha muito azar pelo resto do dia.
- E agora quem vai dar aulas de hipismo a minha filha?
Evidentemente a pergunta de Seu Antunes não esperava por uma resposta. Mas encontrou.
- Com licença Seu Antunes, eu tenho experiência com hipismo. Posso dar aulas a sua filha se o senhor me permitir. – disse Zé Doca meio tímido, mas sem perder tempo.
- Do que é que você ta falando moleque? Não brinque com coisa séria que eu lhe estouro os miolos e jogo pras galinhas comerem. – disse Seu Antunes, voltando a apontar a arma para o rapaz.
- Calma! Calma Seu Antunes! Juro pro senhor que tô falando a verdade – prosseguiu Zé Doca. - Já fui chamado pra dar aula até na capital, mas num fui. O Senhor sabe né? Sou muito apegado a minha terrinha...
- É verdade mesmo isso rapaz? – perguntou seu Antunes intrigado.
- A mais pura verdade. – disse Zé Doca com convicção.
Seu Antunes então ficou calado por alguns segundos. Passou a mão pela cabeça. Olhou pro chão e depois olhou para Zé Doca.
- Então amanhã antes do galo cantar quero você na minha fazenda! Sem falta. Se você não for eu mando meus homens queimarem seu barraco com você e sua avó dentro entendeu?
- Perfeitamente! – disse Zé Doca confiante, com um ar de felicidade inocultável no rosto.
Seu Antunes então entrou na charrete. Petrônio e Potrinio fizeram o mesmo. O outro capanga subiu no cavalo, e todos partiram. E Zé Doca ficou para trás...

23 de ago. de 2007

Capitulo 1

Em meados da decada de oitenta, a algumas centenas de quilômetros de Teresina, capital do Estado do Piaui, existia uma cidade desconhecida até mesmo pelo mais preciso sistema GPS existente. Uma cidade que jamais ousou aparecer em mapas. Na verdade só levou o titulo de cidade há menos de quarenta anos em razão de interesses meramente políticos. Foi batizada com o nome de Aqui-Perto pelo seu fundador e primeiro prefeito da cidade, o senhor José Apolônio Bavariano que morreu sem revelar o real motivo da escolha do nome da cidade. Há quem diga que foi por pura gozação mesmo e talvez tenham razão já que toda vez que o Sr. Bavariano pronunciava o nome da cidade em seus discursos em praça pública ele era subitamente atacado por uma crise de risos, o que lhe obrigava a beber um copo com água e açúcar para prosseguir o discurso.No geral Aqui-Perto é uma cidade tranqüila, pacata, de clima quente e úmido, de ar campestre e terras férteis. Uma cidade pequena e estreita. Uma cidade muito pequena e estreita. Uma cidade tão pequena e estreita que certa vez foi observado que uma andorinha que sobrevoava a cidade ficou com as asas de fora.A cidade apresenta-se quase sempre muito tranqüila e serena. Mas não hoje. Hoje é Domingo, dia de fazer compras, “dia de feira” como eles dizem.A cidade está bastante agitada. As pessoas andam quase que aleatoriamente de um lado ao outro da Avenida central procurando os produtos de que necessitam.Ao lado da avenida, na praça central, que é na verdade a única da cidade, os cidadãos aquipertenses conversam, caminham, sentam e lêem jornais. Entre essas pessoas que conversam, caminham, sentam e lêem jornais encontra-se o Excelentíssimo, Estupêndissimo, Ilustríssimo, Magnificissimo Sr. Arnaldo Antunes Bavariano. O Sr. Antunes,como gosta de ser chamado, é um homem de estatura mediana e corpo volumoso porém rígido. O seu rosto de homem sofrido e seus cabelos brancos não escondem as suas mais de cinco décadas de vida. Mas de sofrido o Sr. Antunes só tem mesmo o rosto. Homem de boa família, nasceu em berço de ouro. Os primeiros doze anos de sua vida morou na capital do estado onde colou grau numa escola particular cujo proprietário era seu próprio pai,o Sr. José Apolônio Bavariano que nessa época, dentre outras coisas, vivia de fazer empréstimos a juros altíssimos. Financiava a campanha de muitos políticos da região. Chegava a emprestar dinheiro até pro próprio Governador do Estado.Os Bavarianos tinham muito apego pelo campo e costumavam passar os finais de semana numa de suas fazendas que ficavam às margens de Teresina. O jovem Antunes adorava brincar na areia da beira do rio enquanto seu pai tentava, quase sempre frustradamente, fisgar algum peixe. Adorava jogar bola com os filhos dos criados da fazenda que eram obrigados a passar a bola pra ele e deixa-lo fazer todos os gols. Adorava também quando sua mãe o balançava na rede enquanto lhe contava uma boa história sobre os Bavarianos ascendentes. O sr. José Apolônio também adorava o campo. Adorava-o na mesma medida em que odiava a cidade. Ele sempre achou que a cidade grande não era lugar para ele. E de fato não era mesmo. Seu Apolônio achava tudo na cidade muito complicado. As invenções que facilitam a vida na cidade grande como elevador, telefone e sinal de trânsito sempre lhe deixavam intrigado. Certa vez, ao tentar entrar em uma loja de conveniências ele ficou durante cerca de trinta minutos preso na porta giratória até que um dos funcionários da loja, depois de quase fazer xixi nas calças de tanto rir resolveu ajuda-lo.E assim seguia a vida dos Bavarianos, da cidade pro campo, do campo pra cidade, até que certo dia o Sr. Apolônio recebeu como pagamento de um empréstimo que tinha feito a um político da capital, incontáveis hectares de terra. Estas terras ficavam há pouco mais de trezentos quilômetros de Teresina. A Primeira vez que ele viu aquelas terras se apaixonou. Se encantou com o clima, com os campos verdes, com o rio, com a diversidade de pássaros e tudo mais e viu ali uma possibilidade concreta de tornar-se ainda mais rico e, conseqüentemente, mais feliz. E como a ambição está no sangue dos Bavarianos não deu outra. Seu Apolônio pegou sua família, seus criados, seus capangas e seus bens, abandonou a mansão da capital e mudou-se para estas terras.Logo ao chegar, fez um loteamento de dez mil terrenos com uma parte de suas terras e os cedeu gratuitamente a quem chegasse primeiro. Mas o que parecia ser uma boa ação do Sr. Antunes era na verdade um ato de interesse friamente calculado. Passado cincos anos todos os lotes estavam habitados e o Sr. Apolônio com a ajuda de alguns políticos influentes elegeu-se o primeiro prefeito da agora cidade de Aqui-perto. Permaneceu prefeito por mais dos mandatos antes de passar o titulo para seu irmão, o Sr. Eleosmar Bavariano.Em toda a historia de Aqui-perto só houve um prefeito que não era da família dos Bavarianos e este fugiu da cidade ainda na primeira semana do seu mandato depois de ter sido pego em flagrante no seu gabinete totalmente nu posicionado estrategicamente embaixo de um jumento, que parecia estar muito excitado. Nunca mais ninguém teve noticias dele. Os Bavarianos em geral tinham o dom da política. Apresentavam uma qualidade indispensável para a área: sabiam mentir muito bem.O Sr. Antunes é o único Bavariano que não se envolveu na política.Não tinha jeito pra coisa. Era um homem muito rude,ignorante, preconceituoso, não conseguiria conquistar a simpatia dos eleitores. Preferiu o ramo da agiotagem mesmo e nisso ele sempre foi muito bom. Quase metade de todos os pais de família aquipertenses já recorreram ao Sr. Antunes em algum momento de desespero. Ninguém nunca ousou deixar de paga-lo. Ninguém sequer ousou atrasar uma prestação. Todos o temem, e com razão. Contam que certa vez o velho ordenou aos seus capangas que amarrassem um senhor de idade no tronco de uma arvore e o jogassem no leito do rio só porque tinha sonhado que o pobre senhor iria fugir da cidade para não ter que pagar-lhe a divida. O pobre velho foi encontrado morto três dias depois dentro da barriga de uma baleia que tinha encalhado na praia de Copacabana no Rio de Janeiro.
Hoje, nesta bela manhã de domingo, Seu Antunes parece muito inquieto. Anda de um lado ao outro da movimentada praça da cidade sempre olhando para seu relógio de ouro perfeitamente arranjado no seu pulso esquerdo. Não para de movimentar-se de um lado ao outro forçando cada vez mais a sua bengala de madeira com acabamento de couro de onça, como se fosse quebrá-la. Seu Antunes tira o chapéu – e isso acredite é muito raro -, coça a cabeça, apruma o bigode,senta no banco, bate com o pé por três vezes seguidas no chão e olha novamente para o relógio. Os ponteiros marcam exatas dez horas.
- Finalmente – exclamou ele, com o mesmo ar de felicidade de uma criança quando recebe um pirulito como prêmio por ter feito o dever de casa.
O motivo de toda essa alegria que subitamente tomou-lhe conta naquele momento, o motivo de toda aquela ansiedade e nervosismo era perfeitamente justificável: ele ia cobrar uma divida. Se tem uma coisa nesse mundo que ele gosta mesmo de fazer é cobrar uma divida. Nestes dias ele sempre acorda mais cedo, toma um longo banho, entra em jejum, acende uma vela para Santo Expedito, chama dois de seus capangas e exatamente na hora combinada vai atrás do devedor sempre na certeza de que irá receber seu pagamento, seja o que for e o mais importante, seja como for.
O relógio acusa dez horas. O velho se prepara, dobra as mangas do seu terno, ajusta levemente o cinturão apertando um pouco a fivela de ouro que reluzia contra o sol, e segue em direção a charrete estacionada na lateral da praça. Seus capangas o acompanham sentando um a sua esquerda e o outro ao seu lado direito . Um deles estende a mão dando sinal ao charreteiro, e seguem viagem...