24 de ago. de 2007

Capitulo 2

Os dois capangas que - sempre armados é claro - acompanham-o, são seus homens de confiança. Sempre que o velho vai resolver alguma coisa eles estão presentes. São leais ao Sr. Antunes há quase vinte anos. A confiança é tanta que frequentemente ele manda-os à capital com uma quantia impronunciável de dinheiro para depositar em uma de suas contas – é importante grifar aqui que ele não confia seu dinheiro nem mesmo a sua própria mãe que ele tanto estima.
Sentado ao lado direito do Sr. Antunes encontra-se Petrônio, ao seu lado esquerdo, Potrinio.
Petrônio e Potrinio são irmãos. Dizem serem gêmeos mas a verdade é que não se parecem nem um pouco. Petrônio é um pouco mais alto mais forte e mais bronzeado que seu irmão e afirma veemente ser mais bonito também. Possui uma cicatriz que vai das costas até a altura do pescoço que ganhou ainda criança ao cair de um tamarindeiro, arvore muito comum em Aqui - perto. Uma característica bastante peculiar do Petrônio é o fato de ele está sempre piscando o olho esquerdo como uma espécie de tic nervoso. O mais curioso é que tudo é perfeitamente sincronizado como os passos de um tango. O seu olho esquerdo costuma piscar numa razão de quatro para um em relação ao seu olho direito.
Potrinio por sua vez, um pouco mais baixo e franzino que Petrônio, não possui nenhuma cicatriz no corpo e nem o tic nervoso do irmão. Seu único defeito – além é claro do seu ridículo bigode de Charles Chaplin - é ser gago.A gagueira de Potrinio não é daquelas comuns quase imperceptíveis, é daquelas brabas mesmo que chega a irritar profundamente quem conversa com ele. Quando ele está muito ansioso para dizer algo de muito importante ao Sr. Antunes, de tanto esforço que ele faz pra falar, geralmente quase sempre, ele borra as calças, o que obrigou o velho a tomar medidas drásticas: comprou fraldas para ele usar.
Potrinio não nasceu gago, ficou gago. Isso aos vinte anos de idade numa noite de quarta – feira na fazenda dos Bavarianos quando ele se preparava para tomar seu banho semanal. O banheiro estava muito escuro. Potrinio então acendeu uma vela e a colocou vagarosamente no canto esquerdo da porta. Despiu-se e levantou o pé em direção à banheira e foi ai que de repente, num movimento brusco, uma rã inexplicavelmente emerge da água e num ataque impiedoso agarra-se ao pinto de Potrinio. Nenhum médico até hoje conseguiu explicar como esse fato resultou na gagueira de Potrinio. Desde esta data ele não pode sequer ver uma rã, um sapo, um girino ou qualquer coisa do tipo que entra em pânico.
Petrônio e Potrinio são definitivamente diferentes. A única coisa que os fazem parecidos é o fato de se vestirem impecavelmente iguais. A mesma camisa, a mesma calça. A mesma cor de camisa, a mesma cor de calça. Os mesmos sapatos e meias, os mesmos chapeis e tudo o mais. Essa isonomia de vestimentas já proporcionou algumas situações bem cômicas como, por exemplo, o dia em que Potrinio levou uma surra de cabo de vassoura da namorada de seu irmão que o confundiu com seu amado. Por conta disso ele passou dois meses internado num hospital da capital.
Os irmãos Petrônio e Potrinio chegaram ainda muito jovens em Aqui – Perto. Vieram carregados por seu pai. A mãe deles acabara de falecer e de tanta dor que seu pai sentia abandonou a cidade e tudo que tinha. Chegaram a mendigar nas ruas de Aqui – Perto até que certo dia o Sr. Antunes os tirou das ruas e abrigou-lhes na sua fazenda. Claudiomar, o pai dos meninos, trabalhou como caseiro na fazenda do Sr. Antunes por dez anos antes de falecer. O médico da fazenda disse ter sido vitima de ataque cardíaco.
Com a morte do velho, o Sr. Antunes se aproximou ainda mais dos meninos e desde então tem-lhes como seus homens de confiança.
Petrônio e Potrinio estimam muito o velho Antunes. Gostam de fazer trabalhos para ele, assim se sentem muito úteis. E naquele momento, sentado no banco da charrete ao lado do Sr. Antunes é esta a sensação que lhes dominam: a sensação de ser útil, de ser importante ao velho.
Dois quarteirões depois da praça Petrônio faz um sinal com a mão para o charreteiro que entende perfeitamente e faz o cavalo virar a direita. A charrete percorre agora uma rua estreita, cheia de casas antigas e muitas poças d’água no chão asqueroso. Algumas esquinas depois, Petrônio faz outro sinal e a charrete para. Petrônio e Potrinio descem e logo em seguida o Sr. Antunes.
- É aqui mesmo ? – Resmunga Seu Antunes em um tom grosseiro, mas muito feliz por dentro.
- S- Si- Sim Se- Senhor! – Responde Potrinio com muito esforço.
Seu Antunes analisa a casa minuciosamente. É uma casa muito humilde. As paredes todas feitas de barro e o telhado de palha. O simples miado de um gato pode pôr-lhe abaixo a qualquer momento. Mas, para a sorte daquela pobre casa e das almas miseraveis que a habitam, não havia gatos por aquelas bandas. O velho ergue a mão e bate duas vezes na porta. Ninguém abre. Bate novamente. Novamente ninguém abre. Petrônio posiciona-se para derrubar a porta – acredite, ele não precisaria de muito esforço para isso – mas então ouviu-se um estalo, e a porta se abriu. Por trás da porta surgiu vagarosamente o rosto de um rapaz que parecia está dormindo. Seus cabelos estavam arrepiados, os olhos cheios de remelas, a camisa desabotoada e as calças meio tortas. Ergueu a cabeça e tomou um susto que arrepiou mais ainda os seus cabelos.
- Se- Seu Antunes? – Gaguejou ele, apesar de não ser gago.
- Vim receber o meu dinheiro, como combinamos. – Disse Seu Antunes com convicção.
- Seu di-dinheiro? - indagou o rapaz, com a mão direita entre os cabelos, bagunçando-os ainda mais.
- Ora Zé Doca! – brandiu Seu Antunes com um ar meio feroz – Não se faça de desentendido.
- Ah! Sim. O dinheiro... – falou vagarosamente o rapaz.
- Isso mesmo! Deixe de prosa e me entregue logo o dinheiro, não tenho tempo a perder com você. – disse Seu Antunes com um ar mais feroz ainda.
- Sabe o que é... - titubeou Zé Doca.
Seu Antunes fixou os olhos em Zé doca e mexeu levemente na gola da camisa. Seus capangas fizeram o mesmo.
- È que... – falou Zé Doca dando um pequeno passo para fora e abrindo um sorriso tímido.
- É que... É que aconteceu um imprevisto sabe? – disse ele pondo a mão cautelosamente sobre o ombro de Seu Antunes.
- Imprevisto? – indagou o velho com um ar terrivelmente zangado, reitirando a mão de Zé Doca que estava sobre seu ombro. – Ora, rapaz! Do que você está falando?
- Sabe o que é Seu Antunes? - disse o rapaz, vagarosamente, como se estivesse procurando as palavras.
Diga logo rapaz, sem rodeios- É que... – disse Zé Doca caminhando cabisbaixo ao redor do velho.
Seu Antunes deixou escapar um grunhido demonstrando que não estava nem um pouco feliz com aquilo.
- É que eu tava com o dinheiro aqui certinho pra pagar vossa pessoa, sabe? – disse Zé Doca – Mas, ai aconteceu uma coisa terrível Seu Antunes, o senhor não vai nem acreditar.
O velho deixou escapar outro grunhido, desta vez mais estridente.
- Ontem eu fui ao banco tirar o dinheiro pra pagar o senhor, mas ai, quando eu estava voltando pra casa, - falou Zé Doca, com a mão esquerda tirando o suor da testa – apareceram dois assaltantes terrivelmente armados e levaram meu dinheiro. Eu não pude fazer nada Seu Antunes. Eles levaram tudo, até minha roupa. – continuou quase chorando.
Seu Antunes então se virou e encarou Zé Doca que neste momento se encontrava atrás dele. Os capangas também se viraram e fizeram a mesma cara de furioso do seu chefe.
- Oxênti! E desde quando tu tem conta em banco cabra?
- Eu fiz uma semana passada. Pra me prevenir sabe?
- Mas oxênti! Assaltantes por essas bandas?
- Pois é! Eu também num acreditei não. Só depois que eles me mostraram as armas carregadas. – Disse Zé Doca, caminhando novamente ao redor de Seu Antunes.
- E como era o rosto deles?
- O pior que nem deu pra ver, já era muito tarde, estava muito escuro.
- Oxênti cabra, mas o banco num abre a noite não. Tu ta querendo me enrolar? – pergunto Seu Antunes terrivelmente nervoso, pois ele não acreditava que alguém poderia ter coragem de tentar trapaceá-lo.
- Não Seu Antunes. Mas que pensamento o seu...
- Pois tu vai morrer é agora pra servir de lição cabra safado! – interrompeu Seu Antunes.
- Pelo amor de Deus Seu Antunes. Juro que é verdade.
Os capangas seguraram Zé Doca, um em cada braço, e o fizeram ajoelhar de frente ao velho. Seu Antunes então puxou um revolver que tinha escondido na cintura, certificou-se que tinha munição dentro e a apontou para Zé Doca.
- Já sei Seu Antunes, o senhor pode ficar com a casa. - disse com a voz trêmula.
- E um barraco desses lá vale nada.
- Tenha piedade de mim Seu Antunes. Não posso morrer. Minha vovozinha precisa de mim. – disse Zé Doca desesperado.
- Ninguém enrola um Bavariano. Vai pagar com a vida pela graça que fez cabra safado.
Seu Antunes posicionou o dedo sobre o gatilho e fechou o olho esquerdo. Zé Doca baixou a cabeça e começou a rezar sutilmente . Petrônio e Potrinio, ainda imobilizando Zé Doca, fecharam os olhos.
Fez-se um silêncio. Zé Doca tornou a rezar. De repente, ouviu-se um barulho forte. De repente ouviu-se outro barulho forte, e mais outro e mais outro.
Meu Deus? Será que Zé Doca foi mesmo morto? Seria esse o fim deste pobre infeliz?
Não! Zé Doca não podia morrer. Não por ele ser o protagonista desta história. Não, esse não é o motivo.O único motivo que o impedia de morrer era o fato de ele não ter onde cair morto.
Os barulhos? Ah sim! Foram causados pelos passos de um cavalo que aproximava-se a toda velocidade da casa de Zé Doca. O animal parou bruscamente em frente a casa e um homem saltou das suas costas. Seu Antunes levou um susto. Petrônio e Potrinio também. Zé doca, que ainda estava rezando, tomou um susto maior ainda ao perceber que ainda estava vivo.
Era mais um dos capangas de Seu Antunes. Estava ofegante. Parecia muito cansado como se ao invés do cavalo ter-lhe levado até ali,ele tivesse levado o cavalo.
O homem respirou um pouco, olhou para o velho, tirou o chapéu e fez uma reverência.
- Perdoe-me interromper Senhor Antunes – disse
O velho encarou o homem, ainda com a arma apontada para Zé Doca.
- Ora essa! Que diachos você quer por aqui rapaz? Num te disse pra não sair da fazenda ein? – disse irritado.
- Perdoe-me mais uma vez chefe, mas é que aconteceu uma coisa que o senhor precisa saber.
- Pois diga logo que ainda tenho que matar este cabra aqui hoje – disse apontando com rosto para Zé Doca.
- É que... Sua Filha acabou de chegar de viagem e...
- Minha filha? – interrompeu Seu Antunes - Mas como assim? Sem Avisar? Meu Deus...
Seu Antunes neste momento estava tão preocupado com a noticia da chegada de sua filha que nem lembrava que queria matar Zé Doca.
A filha de Seu Antunes é uma jovem moça de vinte e um anos que mora na capital do Estado. Ela costuma passar férias em Aqui - Perto na fazenda da família, pois ela, assim como o pai, é muito apegada à natureza.
- Meu Deus! Ordene imediatamente aos criados que reparem a pista de hipismo para que amanhã o Fagundes já possa dar aulas.Diga a eles também que cuidem dos cavalos dela. Eles estão muito maltratados e ela com certeza vai querer vê-los logo. – falou Seu Antunes em tom imperativo.
- Pois é Seu Antunes, mas ai que ta outro problema... – disse o capanga.
- Outro Problema? Qual?
- É que o Seu Fagundes morreu. Foi agora a pouco.
- Meu Deus! Esse velho até pra morrer escolheu o dia errado. Só pode ser maldição da égua preta.
A égua preta era um animal da fazenda de Seu Antunes no qual ele acreditava ser uma reencarnação do capeta, pois sempre que ele a via tinha muito azar pelo resto do dia.
- E agora quem vai dar aulas de hipismo a minha filha?
Evidentemente a pergunta de Seu Antunes não esperava por uma resposta. Mas encontrou.
- Com licença Seu Antunes, eu tenho experiência com hipismo. Posso dar aulas a sua filha se o senhor me permitir. – disse Zé Doca meio tímido, mas sem perder tempo.
- Do que é que você ta falando moleque? Não brinque com coisa séria que eu lhe estouro os miolos e jogo pras galinhas comerem. – disse Seu Antunes, voltando a apontar a arma para o rapaz.
- Calma! Calma Seu Antunes! Juro pro senhor que tô falando a verdade – prosseguiu Zé Doca. - Já fui chamado pra dar aula até na capital, mas num fui. O Senhor sabe né? Sou muito apegado a minha terrinha...
- É verdade mesmo isso rapaz? – perguntou seu Antunes intrigado.
- A mais pura verdade. – disse Zé Doca com convicção.
Seu Antunes então ficou calado por alguns segundos. Passou a mão pela cabeça. Olhou pro chão e depois olhou para Zé Doca.
- Então amanhã antes do galo cantar quero você na minha fazenda! Sem falta. Se você não for eu mando meus homens queimarem seu barraco com você e sua avó dentro entendeu?
- Perfeitamente! – disse Zé Doca confiante, com um ar de felicidade inocultável no rosto.
Seu Antunes então entrou na charrete. Petrônio e Potrinio fizeram o mesmo. O outro capanga subiu no cavalo, e todos partiram. E Zé Doca ficou para trás...

3 comentários:

Anônimo disse...

Fascinante.
o texto me prendeu até o ultimo paragrafo e estou ansioso pelo proximo capitulo.

Anônimo disse...

Adorei os detalhes e as características apresentadas antes de aparecer o personagem principal.
Petrônio e Potrinio adoreeei eles são ótimos!!
To ansiosa pelo próximo cap!!

Anônimo disse...

Típico humor de Ariano Suassuna.
Apreciei muito, parece ser uma comédia bem definida. esperarei os próximos capítulos.